terça-feira, 5 de junho de 2012

Sobre ralhos, caçarolas e saudades

Na minha memória a casa da minha avó não é laranja como nos dias de hoje. Em algum lugar da minha infância, ela foi pintada de amarelo, neste mesmo lugar da casa amarela, os azulejos do quintal davam lugar a um piso cru, e em algumas partes tinham pedaços de pisos antigos retalhados colados ao chão. Nasci na casa da minha avó e com a ajuda dela, dei meus primeiros passos no mesmo lugar em que ela pendurava a roupa. 

Todo mundo acha que eu falo muito rápido e meio enrolado. Alguns acham feio, eu acho incrível. Incrível, pois de uma certa forma é resquício do sotaque da terra dos meus avós, que vieram de Portugal para o Brasil com vontade de construir uma história diferente para ser contada. Aprendi a falar com a minha vó. Desde cedo já sabia que ralhar era brigar, caçarola era uma panela bem grande, almoçaire era almoçar, paúra era medo e Rudurigo era meu nome. A minha mãe e o meu pai trabalhavam durante o dia toda. Então, cabia aos meus avós os deveres de me acordar,  dar café da manhã, brincar, ensinar, dar almoço e me colocar na perua para o colégio. 

A minha avó não sabe, mas se hoje eu trabalho com televisão a grande culpada por isso é ela. Ela quem me dava  café com leite na frente da Xuxa e da TV Colosso, almoço na frente da Punky, A Levada da Breca e a jantinha na hora que começa a novela das 19h. A minha avó, que para cozinhar usava um avental azul com o alfabeto através de alimentos (C de Cenoura, O de Ovo...), quem pedia para meu avô buscar pedaços de madeira para mim na serralheria da esquina e me ensinava a deixar o Lego de lado, e com aqueles pedaços de pau construir robos, torres e cidades. A minha avó, quem me dava pedaços de peno para fazer capas de herói, e cabaninhas entre o sofás... 

Era ela que no frio vestia um xale vermelho, que veio de Portugal, tirava a caçarola do fundo do armário e cozinhava caldo verde, sopa de ervilha, doce de abóbora. Ela quem as vezes fazia uns doces suspeitos feitos de coisas que originalmente são salgadas: arroz doce, doce de feijão, doce de macarrão. E falando em macarrão como esquecer dos domingos na casa da minha avó.

Quando o Ayrton Senna morreu na corrida, eu lembo da minha tia estar pintando o quarto de roxo, e da minha avó estar se preparando para fazer uma panela de macarrão tamanho família. De domingo, a Tais ia visitar, então sempre tinha guaraná ou coca. No mês de junho, tia festa, Altos caldeirões de vinho quente, quentão e sardinha assada para comemorar o dia de São João. A família inteira fazia brincadeiras e festa em volta de uma fogueira feita pelo meu avô. A minha avó foi tão importante que até a primeira vez que eu fui ao cinema junto com a minha Tia ela foi comigo...

Depois que me mudei da casa da minha avó para a minha própria casa, não deixei de ir pra lá. Toda semana aparecia na casa dela, ou de patins, ou de patinete, ou de bicicleta. E recentemente ainda deu tempo de eu aparecer de carro, ela me viu dirigindo e gosto, mas disse que meu carro não combinava comigo. Nas férias de colégio eu costumava passar semanas na casa da minha avó, assistia Barrados no Baile e Smalville (que ela chamada de Superboy) com ela. 

Minha avó foi na minha formatura do colegial. Estudei a vida inteira em um colégio que ela viu ser erguido assim que chegou neste país. Quando eu entrei na faculdade a frequência de visitas a casa dela diminuiu um pouco. Formei algumas opiniões a respeito da vida e não concordava com alguns comportamento do meu pai e pelo fato de ele morar com ela, a frequência em que eu a via era menor. Mas mesmo assim tinha sempre uma certeza de que se quisesse ve-la, para conversar e contar como funcionava tudo por trás da  telinha que ela sempre via, ela ia estar lá, no seu lugar do sofá vendo televisão...

Minha avó não tia sobrenome. Era só Maria. Maria de Jesus. Dona Maria, Vó Maria. Vó Bisa. Toda vez que eu ia visita-la ela ia até o parapeito do quintal e só entrava de novo em casa quando me via ir embora. 
Essa semana o papel se inverteu, eu e uma renca de filhos, netos e bisnetos chorões tivemos que ve-la partir, de uma forma inesperada. 

Ela decidiu se mudar, foi morar no céu. 
Foi descansar desta vida. 

É a primeira vez que perco alguém próximo e ainda não sei como me sinto. E momentos estou bem, em momentos não. As vezes lembro de algum detalhe dela e entristeço. Mas vou melhorar. Quero lembrar dela com alegria que sempre tinha. Quero lembrar dela com o sorriso no rosto. Quero lembrar dela me ensinando cantigas de Portugal e me oferecendo todas as comidas possíveis. Não cabem nesse texto palavras que expressem minha eterna gratidão por ela. 

Vó, quado um de nós queria muito uma coisa, a senhora ascendia uma vela no seu altarzinho para nos iluminar, Eu espero que onde quer que você esteja, que você continue nos iluminando em cada passo, em cada escolha. Para mim a senhora será eterna...




Valeu Vó, Maria!